Frequentemente comentamos sobre as excelentes propriedades mecânicas e a eficiência dos materiais compostos nos posts do blog, assim como o quanto é importante sempre tentar fabricar um laminado com o mais alto teor de fibras possível com o a menor quantidade de vazios.
No entanto, estimar as propriedades mecânicas de laminados na prática não é um processo assim tão fácil. Existem uma infinidade de variáveis a serem consideradas, começando pelo tipo dos materiais, pelo processo de laminação, pressão de moldagem, temperatura e condições ambientais de cura, umidade, além do processo de pós-cura. Processos mais convencionais, que ainda são utilizados pela indústria, como o spray-up e a laminação manual dependem fortemente até mesmo da habilidade do laminador.
Não é nenhum preciosismo afirmar que só é possível ter certeza das propriedades mecânicas de um laminado depois de que ele for construído e testado em ensaios de tração, compressão, flexão e cisalhamento. No entanto, esse é um trabalho caro e muito longe da realidade dos construtores amadores de embarcações.
Isso não significa que esses construtores devam projetar e construir às cegas ou que devam apenas acreditar em experiências anteriores. A micromecânica se apresenta como uma ferramenta de projeto capaz de estimar as propriedades de uma lâmina de material composto com base nas propriedades dos elementos que a constituem, ou seja, a fibra e a resina.
Uma lâmina de material composto é formada por uma matriz polimérica homogênea com adesão perfeita a um conjunto de fibras de reforço perfeitamente alinhadas, espaçadas e contínuas por todo o comprimento do painel. Um conjunto de lâminas como o da Figura 1 forma um laminado e um conjunto de laminados forma uma estrutura, que pode ser o casco de uma embarcação, uma pá de geração de energia eólica ou a fuselagem de uma aeronave, por exemplo.
As características físicas e mecânicas das fibras e resinas estão amplamente disponíveis para os construtores e projetistas em uma ficha disponibilizada pelos fabricantes com as especificações dos materiais, normalmente conhecida como datasheet. A micromecânica permite a utilização dessas informações como forma de prever o comportamento mecânico do material composto construído com esses elementos, o que é uma grande economia de tempo e dinheiro em comparação com a realização de ensaios mecânicos.
É importante ressaltar que os resultados obtidos através dessa ferramenta são apenas estimativas, uma vez que as hipóteses de matriz homogênea e sem vazios, além de adesão perfeita entre fibras e resina, não são possíveis em condições reais. No entanto, as estimativas produzidas são bastante interessantes, além de trabalhar com um conjunto muito simples de equações.
A primeira é a Equação 1 apresentada abaixo, que permite estimar propriedades físicas como a densidade, assim como propriedades mecânicas na direção longitudinal da Figura 1, como a resistência à tração σ e o módulo de elasticidade longitudinal E1:
A ideia da expressão é que uma propriedade do laminado pode ser estimada a partir da média ponderada das propriedades da fibra Pf e da matriz Pm. O elemento ponderador é a fração volumétrica de fibra vf e de resina vm. A fração volumétrica de um elemento é o volume que ele ocupa no laminado dividido pelo volume total do laminado, ou seja:
A fração volumétrica, então, é uma propriedade adimensional obtida a partir da razão entre dois volumes. Na prática não é fácil medir volumes com precisão, principalmente quando se fala das fibras. O post Fração em Peso e Fração em Volume aprofunda essa discussão e mostra como converter a fração mássica, facilmente obtida na realidade de um estaleiro, em fração volumétrica.
As propriedades mecânicas das fibras são sempre superiores em relação às das resinas e é por essa razão que sempre se busca altos teores de fibra. A quantidade de resina ideal é apenas aquela suficiente para impregnar completamente os filamentos de fibra, fornecendo proteção e sendo capaz de transferir os esforços mecânicos.
Outra característica bastante citada no blog é o fato de que os materiais compostos apresentam resistências mecânicas diferentes em diferentes direções. Por definição, eles são ortotrópicos, o que significa que apresentam propriedades desiguais nas direções longitudinal e transversal. Olhando para Figura 1, é fácil entender o porquê.
Se uma força axial é aplicada na direção 1, as fibras conseguem realizar uma excelente contribuição na resistência e rigidez do laminado. Quando a força axial é aplicada na direção 2, as fibras já não estão com a carga aplicada em sua direção preferencial e a Equação 1 não pode ser aplicada. É possível estimar as propriedades mecânicas na direção 2 com a seguinte expressão:
As duas propriedades mais importantes que podem ser estimadas a partir da Equação 3 são o módulo de elasticidade transversal E2 e o módulo de cisalhamento G12.
A micromecânica é uma ferramenta simples, de fácil aplicação e baixo custo a disposição dos projetistas e construtores de materiais compostos. Além de fornecer estimativas das propriedades físicas e mecânicas aceitáveis para os laminados antes mesmo que eles sejam construídos, ela é capaz de ilustrar algumas variáveis importantes no projeto de estruturas e na escolha do processo produtivo.
Para determinar com melhor precisão as características dos laminados, é necessário construir e ensaiar amostras dos materiais para verificar como eles se comportam em condições reais. No livro Processo de Infusão a Vácuo em Composites é possível ler mais sobre micromecânica e encontrar dados de propriedades mecânicas de laminados reais que foram ensaiados e podem ser utilizados para construção de sua embarcação.
Laura Dias disse:
Onde é possível encontrar os datasheets dos materiais?
Barracuda Composites disse:
Olá, Laura
Esse tipo de documento deve ser disponibilizado tanto pelos fabricantes quanto pelos fornecedores dos materiais. Na e-composites a página de cada produto apresenta a descrição e tem o link por onde é possível acessar esses documentos.
Fernando Lopez disse:
Como eu sei qual é o valor correto de fração volumétrica para utilizar?
Barracuda Composites disse:
Olá, Fernando
A fração volumétrica pode ser estimada em função do processo de fabricação que você utilizar. Nos posts sobre Estimativa do Peso de Um Laminado você consegue os valores típicos de frações mássicas que cada processo pode entregar e no post Fração em Peso e Volume de um Laminado você encontra as informações necessárias para transformar o teor de fibra em fração volumétrica.
Gabriel Pedroni disse:
Quais são os ensaios mostrados nas imagens?
Barracuda Composites disse:
Olá, Gabriel
As imagens ilustram dos ensaios mecânicos. O primeiro é o ensaio de tração que aplica um carga axial no corpo de prova com o objetivo de descobrir seu módulo de elasticidade (ou rigidez) e limite de resistência à tração, além do limite elástico, que perdura até uma chamada resistência ao escoamento.
O segundo teste é o ensaio de flexão. O corpo de prova é simplesmente apoiado e uma carga pontual é aplicada na metade de seu comprimento, para investigar como ele resiste a esse tipo de esforço e o quanto se deforma. A flexão é um tipo de carregamento que acaba causando tração em uma das faces e compressão na face oposta, além de gerar uma distribuição de cisalhamento ao longo da seção transversal do corpo de prova. Ou seja, é um conjunto de esforços que se assemelha com condições reais de carregamento.